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A magia da lampreia fumada

  • Texto: Fátima Iken
  • Fotografia: Ricardo Garrido
01 de Dezembro, 2024

De facto, há criações populares que são verdadeiros tesouros. A cultura da pesca artesanal da lampreia em terras do Minho, mais especificamente em Melgaço, é uma arte secular que tem de se conhecer de perto.

A pesca nas tradicionais pesqueiras constitui um património de grande valor etnográfico e antropológico, abarcando uma arquitetura que exibe a relação do homem com o rio, sua fonte de subsistência secular.

Lapidadas a partir de massas rochosas graníticas nas margens do rio, as pesqueiras representam um singular caso onde arquitetura, alimento e paisagem se cruzam.

Estruturas ancestrais de pedra que existem nas águas interiores, entre Monção e Melgaço, servem para colocar armadilhas (a que chamam o “botirão” e “cabaceira”). Depois foram sendo transmitidas em herança, passando de geração em geração entre as famílias locais, como propriedade privada. Podem servir para pescar lampreia e ainda sável ou salmão, dependendo das suas configurações.

Em Melgaço, de forma a garantir a autenticidade da origem da lampreia, a autarquia avançou, aliás, com um projeto pioneiro: a rastreabilidade, atribuindo um código a cada lampreia pescada no Minho, de forma a que haja a certeza da origem para o consumidor.

Para além disso, dado o enorme valor patrimonial das pesqueiras, e da arte a elas associada, foi apresentada uma candidatura a registo nacional de Património Cultural Imaterial.

De facto, trata-se de uma prática antiga, musculada. Desde o século VIII que assim se pescava por aqui, sobretudo nas áreas dos mosteiros, já que os abades chamavam-lhe um figo.

Existem hoje cerca de 151 pesqueiras registadas com proprietário, passando de forma geracional de pais para filhos, e o seu grande número elucida a quantidade de lampreias que então existiam neste curso de água. A pesqueira é, assim, propriedade privada, individual ou coletiva, na qual a pessoa responsável pela pesqueira é designada de “patrão”.

No caso de vários herdeiros, no sistema de partilha comunitária, o uso da pesqueira é dividido por todos, existindo para isso uma “escala de redagem” na qual constam os dias pertencentes a cada um.

No total, são mais de 694 as pesqueiras do lado português e 200 do lado galego, de Lapela até à fronteira, havendo algumas mais recentes, já do século XX.

É no Inverno que a lampreia deixa o mar e regressa ao Rio Minho para o processo de desova que ocorre entre dezembro e março.

É uma longa viagem desde o oceano até ao rio e, tal como as enguias, a lampreia percorre quilómetros lutando contra correntes hercúleas e grandes distâncias para desovar nas águas doces mais próximas. Um ciclo que acaba, normalmente, na sua própria morte, mas na continuação da espécie.

Como nasce no rio, se cria no mar e regressa ao sítio que a viu nascer, é um animal musculado e saboroso.

A Melgaço chega um pouco mais tarde, pois, desde a Foz do rio, o percurso é longo e complicado, exigindo-lhe esforço. É, assim, entre os meses de fevereiro e abril que os pescadores armam as redes tradicionais nas pesqueiras.

Como a lampreia serpenteia no fundo pedregoso do rio, o homem conseguiu criar esse engenhoso sistema de muros em pedra que partem das próprias margens e se edificam no leito do rio. Algumas chegam a possuir quase dois metros de largura e têm em consideração a orientação das correntes.

De facto, tudo começa pela pesca. Neste caso, nas pesqueiras, no rio Minho. O acesso não é fácil nem isento de riscos, tendo vários pescadores já perdido aqui a vida. Inclusive, para aceder a algumas, só se consegue a proeza de batela (barco tradicional) ou de slide. Estamos em Alvaredo, numa das belíssimas margens do Minho, pujante na flora endógena e na fauna, onde o cinza azulado e vibrante do rio serpenteia entre as serranias imensas, povoadas de manchas de verde, num lugar edénico.

Descemos por uma encosta a pique entre vegetação densa e já ouvimos, lá ao fundo, o marulhar das águas do rio Minho que tem uma extensão de 340 quilómetros, desde Lugo, Espanha. As cinco barragens no leito não ajudam à viagem que as lampreias, sáveis e salmões têm de fazer, pelo que o descréscimo destes espécimens é uma realidade, adensada, este ano, pela seca severa.

Três pescadores acompanham-nos neste percuso e conhecem o rio melhor que as palmas das mãos. Tratam-no por tu. São os chamados pescadores de sobrevivência, pesca que se pratica de Lapela a S.Gregório. Têm gravada nos olhos a história deste rio que se conta em aventuras.

O senhor Venâncio, antigo guarda da GNR, desde os sete anos que aqui vem à pesca com o pai e o rio é a sua paixão. “Quero ao rio, pelo rio, mais nada” – conta, enquanto veste o colete para se aventurar pelas pedras escorregadias. Os seus olhos enchem-se de regozijo quando olha as águas fartas e borbulhantes cuja correnteza e rápidos assustam. Para rafting hoje estaria bom…

António Castro, antigo carteiro, também não se atrapalha com os seus mais de setenta anos e até slide faz sobre as águas, sem medo. E a corrente é forte, por vezes assustadora, entre cachões que tornam a água em espuma branca.

Mas a idade destes homens confere que a arte pode estar em vias de extinção, já que as gerações mais jovens não se interessam por cumprir e aprender esta tradição. Chegamos agora à pesqueira nº. 121. Cada uma é batizada com um nome e são registadas, tal como um imóvel. Hora de saltar entre pedras aproveitando a baixa da maré. É complicado localizar as pesqueiras por terra, tarefa que só os pescadores experientes e a Policia Marítima conseguem. Descortiná-las não é para leigos e, muitas vezes, só com ajuda de registos seculares, havendo notícia de que até na época dos romanos já se pescava com estes procedimentos.

Isto não é fácil sequer de explicar, mas vamos tentar. Trata-se de uma complexa coreografia onde movimentos de fluxo e redes integram um esquema inteligente e complicado de pescaria.

É para a zona mais alta da pesqueira, o piau, que sobem os pescadores para puxar as redes. Entre uma e outra construção, existe ainda o rabo da pesqueira, um conjunto de pedras que forma um obstáculo a meio do rio, impedindo a subida do peixe (seja ele um dos tesouros que por aqui circula, lampreia, sável e salmão).

Embora com diferentes tipologias, as pesqueiras permitem a utilização de duas artes de pesca (redes): a cabaceira e o botirão que o senhor Venâncio faz questão em explicar. O botirão é uma armadilha que pode atingir dois metros  de comprimento, inicialmente construída em madeira (atualmente em ferro), é de forma cónica e com duas redes, uma exterior e outra interior. Já a cabaceira pode atingir os sete metros de comprimento constituída pelo “pano” (de forma retangular), obstáculo que obriga o peixe a dirigir-se a outra secção, e o “rabo”, de forma troncocónica, apresentando uma “boca” onde a lampreia ou o sável entram atraídos pelo movimento da rede e acabam por transpor uma pequena abertura. Uma lexicologia que nos dá ideia da complexidade das armadilhas engendradas pelo homem nesta que é considerada aqui uma pesca de subsistência.

Para segurar a cabaceira (chama-se assim porque tinha uma cabaça noutros tempos para flutuar) ou o botirão é utilizada uma corda resistente ou um cadeado que vai amarrar ao lapadoiro e a um marco no cimo da pesqueira. Estes marcos podem ser em ferro ou em pedra cravados na própria pesqueira. No passado, eram em pedra moldada pelas mãos do pedreiro, tendo sido progressivamente substituídos por marcos em ferro.

A lampreia tenta desviar-se e, procurando a zona mais favorável para continuar a subida, armadilha-se precisamente onde se encontram as redes. Entram, assim, por um canal central e depois passam para outra área da qual já não conseguem sair, ficando presas na rede.

Na sua fase larvar, a lampreia pode viver até sete anos nos rios comendo microalgas e, já na água salgada, desenvolvem a maturidade sexual, processo de metamorfose que pode durar vários anos.

Regressa depois passados anos à água doce (podem viver quase 20 anos) para se reproduzir e morrer, duas semanas mais tarde.

Em Portugal existem seis espécies: a lampreia-marinha, a lampreia-de-rio, a lampreia-de-riacho, lampreia-da-costa-da-prata, a lampreia-do-sado e a lampreia-do-nabão. Se no século XIX e parte do século XX era abundante nos rios portugueses, sobretudo no Minho, Tejo e Zêzere ou Guadiana. Mas tem vindo a entrar em declínio, tanto devido à poluição como por causa das barragens, sendo já considerada espécie em risco, hoje inscrita no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal.

Para além do tipo de pesca ser sui generis, a confeção da lampreia fumada é também bastante caraterística e um verdadeiro pitéu: escala-se, abre-se com sal e fuma-se com madeira. Seca no fumeiro, pode comer-se ao longo do resto do ano, assada na brasa e servida com batatas cozidas.

Pode ainda fazer-se com demolha. Depois de passar pela salmoura e pelo processo de secagem, é demolhada e panada, em pataniscas ou recheada. É uma das iguarias tradicionais de Melgaço que aconselhamos a ser provada e uma maneira dos pescadores conservarem esta iguaria ao longo do tempo, numa forma de subsistência para quem vive no interior rural. Está ainda aliada a momentos de celebração ou associada aos trabalhos agrícolas.

De facto, o fumo é uma das imagens de marca de Melgaço. O fumeiro é o produto mais presente, a par do Alvarinho. Aliás, o fumeiro foi há dois anos distinguido pela Comissão Europeia, através da integração do presunto e da chouriça de carne na lista dos produtos com Indicação Geográfica Protegida (IGP).

Noutros tempos, as redes conseguiam capturar grandes quantidades do ciclóstomo, pelo que era necessário trazê-las para casa de carro de bois. Por esta mesma razão, foi necessário proceder à conservação através da secagem para as preservar no tempo, permitindo assim serem consumidas ao longo do ano.

A arte original de escalar e secar a lampreia ao fumo tornou-a num ícone local. De sabor inconfundível, mas indescritível, este pitéu aparece sempre na mesa dos melgacenses por altura das celebrações ou dos trabalhos agrícolas e tornou-se um prato raro e muito apreciado.

O método para a secagem da lampreia é similar ao da salga da carne de porco pelo fumo. A primeira etapa passa por dissecar a lampreia da boca à cauda e limpá-la das vísceras, esfregando-a no seu próprio sangue.

Passamos agora à casa do senhor Carvalho, antigo marinheiro que nos ensina a técnica com a habitual hospitalidade minhota.

Os pescadores trazem já uma lampreia acabada de pescar que é estirada sobre uma tábua de madeira e dissecada com X-ato, como se fosse uma sala de operações. Retira-se logo a tripa, essencial para não deixar sabor desagradável, e colocam-se pequenos pedaços de canas, depois de aberta, para a esticar.

Depois de se escalar a lampreia – intersecionando três cortes longitudinais interiores – no centro e de cada lado – é feita uma salmoura onde deve repousar 24 horas. De seguida, retira-se do sal e coloca-se uma cana de 15 em 15 centímetros, de forma a obrigar a esticar-se e a mantê-la aberta. Seca-se, então, ao fumo durante quatro a cinco dias, mas pode ir até aos 10 dias de fumo com um mínimo de 8 horas de fumo cada dia, em fogo muito brando, mas contínuo. “Passados quatro ou cinco dias está boa para fazer nas brasas”. Mas aqui utiliza-se em várias confeções.

Na hora de fumar é essencial escolher bem a lenha. Pode ser de choupo, carvalho ou oliveira (madeiras que contribuem para o sabor específico, de igual modo, sendo aconselhada sobretudo a de choupo por ser mais limpo e a ideal para fumar peixe).

O senhor Carvalho escolhe a madeira de carvalho “pois é suave, não é agressiva, respeitando a lampreia”.

Seca então no fumeiro, pode comer-se ao longo do resto do ano, assada na brasa, no espeto ou grelhada e servida com batatas cozidas. No cozido, com hortaliça, com massa e feijão, albardada ou panada.

Deve ainda fazer-se com demolha, caso contrário pode ficar muito salgada. Se optar pela demolha deve deixar a lampreia em água fria durante 10 horas, secar com um pano e distribuir endro pelo interior, podendo acrescentar ainda fatias de presunto.

Cose-se de seguida, no sentido da cauda para cabeça, e enrola-se em folhas de couve, dando-lhe o formato de cilindro e levando ao forno, a 180ºC, cerca de 20 minutos.

Assada na brasa, enrolada com presunto, panada com ovos, cozida com batatas e couves e regada com azeite, integrada no cozido, como ainda existe tradição em Melgaço, são algumas das formas de a saborear, mas é sempre um petisco sem igual. Como produto de fumeiro conserva-se no tempo, contudo é aconselhável consumi-la no primeiro ano uma vez que com o tempo pode ficar rançosa e perde qualidade no seu sabor.

Rematamos a reportagem na Tasquinha da Portela, em Paderne, onde degustamos vários pratos confecionados com lampreia fumada que não esqueceremos tão cedo. Albardada, com arroz de tomate e feijão, assada com batata cozida e grelos ou recheada com presunto, ovo cozido e pimento, três maneiras tradicionais de a cozinhar em Melgaço. As três iguarias foram aprovadas por unanimidade.