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Sintra, a queijada da Sapa

Macias por dentro e crocantes por fora, as queijadas da Sapa são um ícone de Sintra e já uma espécie de prolongamento deste paraíso onde matas e florestas encantadas se abraçam, marcando para sempre quem aqui chega.

  • Texto: Fátima Iken
  • Fotografia: Rita Chantre
27 de Novembro, 2024

Sintra respira a melancolia bafejada pelo perfume das madressilvas, a luz coada, o aroma inebriante dos bosques e matas, o recorte poético das suas esquinas. E, claro, as queijadas. Dá que pensar saber que as grandes passeatas gastronómicas já se faziam de Lisboa até à antiga Estrada Real, no século XVIII e XIX, sendo um dos chamarizes a doce suavidade das queijadas da Sapa. Primeiro a cavalo, depois no Larmanjat (uma espécie de tramway) e mais tarde no comboio, com a inauguração do caminho-de-ferro, ir a Sintra era obrigatoriamente provar o seu símbolo gastronómico.

Nessa altura, Sintra florescia entre o aroma “das rosas-chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias”, os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, a vilegiatura, as batalhas de flores e os bailes inaugurados pela Princesa Amélia. Ramalho descrevia, em 1888, n’”As Farpas” o ambiente onde as elites se divertiam no Estio. E mais adiante rematava: “Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro”.

Nessa altura, Sintra florescia entre o aroma “das rosas-chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias”, os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, a vilegiatura, as batalhas de flores e os bailes inaugurados pela Princesa Amélia. Ramalho descrevia, em 1888, n’”As Farpas” o ambiente onde as elites se divertiam no Estio. E mais adiante rematava: “Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro”.

Como vemos, as queijadas já eram motivo de chamamento desde séculos passados e remontam, mais precisamente, à época medieval. Começaram, até, por servir de moeda de troca entre 1227 e 1586, como forma pagamento de foro ou arrendamento de terras. Ou seja, a sua origem é do século XIII, apesar de nessa altura serem algo diferentes. Têm, por isso, mais de oito séculos. Um doce assim, com este passado e história, até sabe melhor, vos garanto.

Se uns falam das suas origens árabes, outros apontam os conventos, nomeadamente o de Penha Longa, para a génese da receita. Lugar de bons queijos desde os tempos medievais, ainda hoje o queijo de vaca local é usado nas queijadas, seja de S. João das Lampas ou Terrugem. A marca Sapa é a mais antiga das que atualmente se fabricam e terá começado pelas mãos de Maria Sapa, em Ranholas, localidade que, na altura, era a porta de entrada de Sintra. Inicialmente, vendiam-se no Ramalhãozinho, antes do caminho-de-ferro. O comboio vinha do Rego até Sintra com paragem na Porcalhota, onde os aguadeiros e as vendedeiras faziam o seu negócio durante esta paragem.

A palavra Sapa terá sido originada na compleição da sua autora que, pelo que consta, era parecida com um sapo. É caso para dizer que a Sapa virou princesa e, neste caso, as queijadas são igualmente principescas.

A Porcalhota situava-se na bifurcação das estradas reais e era também famosa pelos petiscos, o pão saloio, o pão-de-ló e um célebre prato de coelho à caçador do famoso “Pedro dos Coelhos”.

Sintra, situada nos arrabaldes de Lisboa, era também, ao mesmo tempo, a denominada zona saloia, de onde vinham também muitos produtos agrícolas para a capital. Também o comboio parava na Volta do Duche, nome curioso que tem origem nuns banhos termais de uma nascente de água chamada Duche (cuja origem reporta a uma quinta de um duque).

Por essa razão, a partir dessa data, a Sapa deslocou-se para a Volta do Duche, onde agora estamos, num dia primaveril, evocando essa Maria Sapa que se estabelece aqui em 1756. Nessa altura, a produção diária seria de vinte dúzias e os principais clientes eram os fidalgos e burgueses que procuravam Sintra. Outras marcas seguiram o exemplo. A Mathilde (que já não existe, mas é agora uma casa de chá muito aprazível), a Piriquita, o Gregório e a Casa do Preto nasceram impulsionadas pelo comboio a vapor. Cada marca releva pequenas alterações na receita, o que faz a diferença das queijadas. E nem os reis escapavam ao seu encanto, pelo que D. Fernando II, quando passava em Ranholas, apeava-se com toda a comitiva e, depois, também D. Manuel II para saborear as belas das queijadas.

Na literatura, o personagem queirosiano Cruges, em “Os Maias” não se queria, igualmente, esquecer destas sedutoras doçuras. E o personagem Ega, igualmente, as apreciava: “ia largar atarantadamente o embrulho, para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Sintra rolou, esmagando-se, sobre as flores do tapete”. De facto, os escritores românticos viam em Sintra o local idílico e a inspiração necessária. Era ouro sobre azul.

Camilo refere-as igualmente na obra “As aventuras de Basílio Fernandes Enxertado”: “Basílio levava na algibeira do albornoz um embrulho de queijadas de Sapa. O outro Eden não tinha queijadas”.

Sintra foi, assim, uma das primeiras áreas turísticas portuguesas.

Aí, os hotéis de Vítor Sassetti e o Lawrence reuniam as elites. Intelectuais como Bulhão Pato, Júlio César Machado, Eça de Queirós, Batalha Reis ou Ramalho Ortigão passavam temporadas aqui.

No “Roteiro do Viajante no Continente e nos Caminhos de ferro”, datado de 1865, João António Abreu também as referia: “É quase condição forçada de quem lá vai comprar as queijadas da Sapa”. A fama estendia-se até a outros países e continentes. Acabaram, aliás, por atrair as rotas turísticas que no século XIX davam os primeiros passos, altura em que as chamadas “especialidades” locais ganhavam alento e fama como forma de realçar os atributos de cada terra, paradigma da época que exaltava as tradições populares e nacionais.

Falar da matriz identitária de Sintra é falar de queijadas. Elas são um emblema histórico e um símbolo icónico da alma da cidade que então foi vila. É um saber-fazer secular que hoje se reproduz de forma igualmente artesanal, apesar de alguns utensílios e o antigo forno de lenha ou os alguidares de barro não serem já utilizados. As queijadas da Sapa encontram-se na génese da mesma família há quatro séculos. É obra. E são tão boas, mas tão boas, que se podem comer a qualquer hora e sem nenhum motivo que não seja a gula.

Entrar nesta espécie de templo emblemático é como fazer uma viagem no tempo. Nostálgica, mas reconfortante. Sente-se o cheirinho estonteante das queijadas que já cozem no forno e, olhando pela janela o Palácio, trocamos impressões com as duas gerações herdeiras deste tesouro.

Rui Neves, neto de Francisco Neves, e sua mãe, Maria Guida, preservam o labor, arte e dedicação da mesma forma que o seu mentor. E fazem questão de o perpetuar sem alterações e de maneira totalmente artesanal. “É tudo feito à mão. Fazemos questão de manter essa filosofia. Apesar da estrutura de custos ser mais pesada, fazemos questão de manter tudo executado de forma artesanal para manter a exigência de qualidade”, conta-nos Rui Neves.

O seu avô Francisco era o grande estudioso e guardião da história longa deste doce, recolhendo documentos que investigava e, assim, elucidando o percurso das queijadas. E era ele mesmo que participava na confeção das queijadas, já que havia pouco pessoal. Nessa altura, o forno era ainda a lenha.

As principais caraterísticas diferenciadoras das queijadas de Sapa são as “cascas” da massa, muito fininha e com seis golpes laterais.

“À máquina é impossível fazer porque a massa não tem gordura e torna-se de difícil manipulação. É só água e farinha e depois é apenas amassada à mão, o que dá muito trabalho”

A massa é bem esticada para ficar estaladiça e depois cortam-se circunferências, formando uma caixa que se deixa secar. “À máquina é impossível fazer porque a massa não tem gordura e torna-se de difícil manipulação. É só água e farinha e depois é apenas amassada à mão, o que dá muito trabalho”, segundo Maria Guida que, ainda hoje, ajuda na confeção, seguindo os passos do pai com brio.

As caixas de massa ou “cascas” são confecionadas fora da queijaria, por outra artesã, e acabam por funcionar como suporte do doce, feito de uma mistura de queijo de vaca fresco, gemas, açúcar e canela, a qual lhes confere uma marca singular.

Chama-se, assim, habitualmente “casca e miolo” às queijadas. Se antigamente eram feitas no forno a lenha, hoje são os fornos elétricos responsáveis pela cozedura, um dos passos essenciais das queijadas. E a cocção representa uma das fases fundamentais do processo de fabrico, já que as queijadas de Sapa são particularmente tostadinhas, depois de 20 minutos num forno a 400º.

Estamos agora já na cozinha e as “artesãs” reúnem-se à volta da mesa, enchendo as caixinhas, com um funil, com a massa que acabou de ser mexida. O toque de canela já se dispersa pelo ar e torna a atmosfera ainda mais convidativa. Sai mais uma fornada do forno e selecionam-se as perfeitas. As restantes, as “tortas” como lhes chamam, são retiradas e noutros tempos dadas às crianças. Há dias em que se podem chegar a fazer 450 queijadas, mas a quantidade varia consoante a época do ano e a procura.

Seguidamente, as queijadas são embrulhadas à mão, “acasaladas”, ou seja, unidas duas a duas pela superfície, com a delicadeza de uma separação em fino papel para não se colarem. Depois, reúnem-se num cilindro com meia-dúzia que só se quer abrir mal se tem na mão. E é isso mesmo que agora fazemos, olhando a paisagem e fechando os olhos. Apenas esperando que este momento seja eterno enquanto dure.