A massa é bem esticada para ficar estaladiça e depois cortam-se circunferências, formando uma caixa que se deixa secar. “À máquina é impossível fazer porque a massa não tem gordura e torna-se de difícil manipulação. É só água e farinha e depois é apenas amassada à mão, o que dá muito trabalho”, segundo Maria Guida que, ainda hoje, ajuda na confeção, seguindo os passos do pai com brio.


Sintra, a queijada da Sapa
Macias por dentro e crocantes por fora, as queijadas da Sapa são um ícone de Sintra e já uma espécie de prolongamento deste paraíso onde matas e florestas encantadas se abraçam, marcando para sempre quem aqui chega.
- Texto: Fátima Iken
- Fotografia: Rita Chantre
Sintra respira a melancolia bafejada pelo perfume das madressilvas, a luz coada, o aroma inebriante dos bosques e matas, o recorte poético das suas esquinas. E, claro, as queijadas. Dá que pensar saber que as grandes passeatas gastronómicas já se faziam de Lisboa até à antiga Estrada Real, no século XVIII e XIX, sendo um dos chamarizes a doce suavidade das queijadas da Sapa. Primeiro a cavalo, depois no Larmanjat (uma espécie de tramway) e mais tarde no comboio, com a inauguração do caminho-de-ferro, ir a Sintra era obrigatoriamente provar o seu símbolo gastronómico.
Nessa altura, Sintra florescia entre o aroma “das rosas-chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias”, os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, a vilegiatura, as batalhas de flores e os bailes inaugurados pela Princesa Amélia. Ramalho descrevia, em 1888, n’”As Farpas” o ambiente onde as elites se divertiam no Estio. E mais adiante rematava: “Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro”.
Nessa altura, Sintra florescia entre o aroma “das rosas-chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias”, os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, a vilegiatura, as batalhas de flores e os bailes inaugurados pela Princesa Amélia. Ramalho descrevia, em 1888, n’”As Farpas” o ambiente onde as elites se divertiam no Estio. E mais adiante rematava: “Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro”.
Como vemos, as queijadas já eram motivo de chamamento desde séculos passados e remontam, mais precisamente, à época medieval. Começaram, até, por servir de moeda de troca entre 1227 e 1586, como forma pagamento de foro ou arrendamento de terras. Ou seja, a sua origem é do século XIII, apesar de nessa altura serem algo diferentes. Têm, por isso, mais de oito séculos. Um doce assim, com este passado e história, até sabe melhor, vos garanto.
Se uns falam das suas origens árabes, outros apontam os conventos, nomeadamente o de Penha Longa, para a génese da receita. Lugar de bons queijos desde os tempos medievais, ainda hoje o queijo de vaca local é usado nas queijadas, seja de S. João das Lampas ou Terrugem. A marca Sapa é a mais antiga das que atualmente se fabricam e terá começado pelas mãos de Maria Sapa, em Ranholas, localidade que, na altura, era a porta de entrada de Sintra. Inicialmente, vendiam-se no Ramalhãozinho, antes do caminho-de-ferro. O comboio vinha do Rego até Sintra com paragem na Porcalhota, onde os aguadeiros e as vendedeiras faziam o seu negócio durante esta paragem.
A palavra Sapa terá sido originada na compleição da sua autora que, pelo que consta, era parecida com um sapo. É caso para dizer que a Sapa virou princesa e, neste caso, as queijadas são igualmente principescas.
A Porcalhota situava-se na bifurcação das estradas reais e era também famosa pelos petiscos, o pão saloio, o pão-de-ló e um célebre prato de coelho à caçador do famoso “Pedro dos Coelhos”.
Sintra, situada nos arrabaldes de Lisboa, era também, ao mesmo tempo, a denominada zona saloia, de onde vinham também muitos produtos agrícolas para a capital. Também o comboio parava na Volta do Duche, nome curioso que tem origem nuns banhos termais de uma nascente de água chamada Duche (cuja origem reporta a uma quinta de um duque).
Por essa razão, a partir dessa data, a Sapa deslocou-se para a Volta do Duche, onde agora estamos, num dia primaveril, evocando essa Maria Sapa que se estabelece aqui em 1756. Nessa altura, a produção diária seria de vinte dúzias e os principais clientes eram os fidalgos e burgueses que procuravam Sintra. Outras marcas seguiram o exemplo. A Mathilde (que já não existe, mas é agora uma casa de chá muito aprazível), a Piriquita, o Gregório e a Casa do Preto nasceram impulsionadas pelo comboio a vapor. Cada marca releva pequenas alterações na receita, o que faz a diferença das queijadas. E nem os reis escapavam ao seu encanto, pelo que D. Fernando II, quando passava em Ranholas, apeava-se com toda a comitiva e, depois, também D. Manuel II para saborear as belas das queijadas.
Na literatura, o personagem queirosiano Cruges, em “Os Maias” não se queria, igualmente, esquecer destas sedutoras doçuras. E o personagem Ega, igualmente, as apreciava: “ia largar atarantadamente o embrulho, para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Sintra rolou, esmagando-se, sobre as flores do tapete”. De facto, os escritores românticos viam em Sintra o local idílico e a inspiração necessária. Era ouro sobre azul.
Camilo refere-as igualmente na obra “As aventuras de Basílio Fernandes Enxertado”: “Basílio levava na algibeira do albornoz um embrulho de queijadas de Sapa. O outro Eden não tinha queijadas”.
Sintra foi, assim, uma das primeiras áreas turísticas portuguesas.
Aí, os hotéis de Vítor Sassetti e o Lawrence reuniam as elites. Intelectuais como Bulhão Pato, Júlio César Machado, Eça de Queirós, Batalha Reis ou Ramalho Ortigão passavam temporadas aqui.
No “Roteiro do Viajante no Continente e nos Caminhos de ferro”, datado de 1865, João António Abreu também as referia: “É quase condição forçada de quem lá vai comprar as queijadas da Sapa”. A fama estendia-se até a outros países e continentes. Acabaram, aliás, por atrair as rotas turísticas que no século XIX davam os primeiros passos, altura em que as chamadas “especialidades” locais ganhavam alento e fama como forma de realçar os atributos de cada terra, paradigma da época que exaltava as tradições populares e nacionais.

Falar da matriz identitária de Sintra é falar de queijadas. Elas são um emblema histórico e um símbolo icónico da alma da cidade que então foi vila. É um saber-fazer secular que hoje se reproduz de forma igualmente artesanal, apesar de alguns utensílios e o antigo forno de lenha ou os alguidares de barro não serem já utilizados. As queijadas da Sapa encontram-se na génese da mesma família há quatro séculos. É obra. E são tão boas, mas tão boas, que se podem comer a qualquer hora e sem nenhum motivo que não seja a gula.
Entrar nesta espécie de templo emblemático é como fazer uma viagem no tempo. Nostálgica, mas reconfortante. Sente-se o cheirinho estonteante das queijadas que já cozem no forno e, olhando pela janela o Palácio, trocamos impressões com as duas gerações herdeiras deste tesouro.

Rui Neves, neto de Francisco Neves, e sua mãe, Maria Guida, preservam o labor, arte e dedicação da mesma forma que o seu mentor. E fazem questão de o perpetuar sem alterações e de maneira totalmente artesanal. “É tudo feito à mão. Fazemos questão de manter essa filosofia. Apesar da estrutura de custos ser mais pesada, fazemos questão de manter tudo executado de forma artesanal para manter a exigência de qualidade”, conta-nos Rui Neves.
O seu avô Francisco era o grande estudioso e guardião da história longa deste doce, recolhendo documentos que investigava e, assim, elucidando o percurso das queijadas. E era ele mesmo que participava na confeção das queijadas, já que havia pouco pessoal. Nessa altura, o forno era ainda a lenha.
As principais caraterísticas diferenciadoras das queijadas de Sapa são as “cascas” da massa, muito fininha e com seis golpes laterais.

“À máquina é impossível fazer porque a massa não tem gordura e torna-se de difícil manipulação. É só água e farinha e depois é apenas amassada à mão, o que dá muito trabalho”
As caixas de massa ou “cascas” são confecionadas fora da queijaria, por outra artesã, e acabam por funcionar como suporte do doce, feito de uma mistura de queijo de vaca fresco, gemas, açúcar e canela, a qual lhes confere uma marca singular.
Chama-se, assim, habitualmente “casca e miolo” às queijadas. Se antigamente eram feitas no forno a lenha, hoje são os fornos elétricos responsáveis pela cozedura, um dos passos essenciais das queijadas. E a cocção representa uma das fases fundamentais do processo de fabrico, já que as queijadas de Sapa são particularmente tostadinhas, depois de 20 minutos num forno a 400º.
Estamos agora já na cozinha e as “artesãs” reúnem-se à volta da mesa, enchendo as caixinhas, com um funil, com a massa que acabou de ser mexida. O toque de canela já se dispersa pelo ar e torna a atmosfera ainda mais convidativa. Sai mais uma fornada do forno e selecionam-se as perfeitas. As restantes, as “tortas” como lhes chamam, são retiradas e noutros tempos dadas às crianças. Há dias em que se podem chegar a fazer 450 queijadas, mas a quantidade varia consoante a época do ano e a procura.
Seguidamente, as queijadas são embrulhadas à mão, “acasaladas”, ou seja, unidas duas a duas pela superfície, com a delicadeza de uma separação em fino papel para não se colarem. Depois, reúnem-se num cilindro com meia-dúzia que só se quer abrir mal se tem na mão. E é isso mesmo que agora fazemos, olhando a paisagem e fechando os olhos. Apenas esperando que este momento seja eterno enquanto dure.
