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Em Castel di Sangro, o criativo chef italiano conjuga três estrelas Michelin com uma gastronomia ousada e minimalista, forma profissionais para o futuro e quer provar que, usando apenas vegetais, pode transformar a cozinha de seu país.
Casadonna é um antigo mosteiro erguido no Vale do Sangro no século XVI na região italiana de Abruzzo. Todo construído em concreto bruto e pedra, com suas paredes brancas imaculadas, largas janelas de vidro e portas de madeira talhada, é um edifício imponente rodeado por vinhas, jardins e pomares nos arredores do Parco Nazionale d’Abruzzo, uma reserva biológica da região. Fechado por um período, foi trazido de volta à vida após uma restauração corajosa focada em manter seu caráter histórico, mas que buscava uma transição para um estilo mais contemporâneo. Ganhou obras de arte, móveis de design e se transformou na casa onde o chef italiano Niko Romito e sua irmã Cristiana Romito recebem os clientes que vêm de todas as partes da Itália e do mundo para visitaro Reale, restaurante com três estrelas Michelin que eles mantêm desde 2011 e que também funciona como hospedagem.
Não à toa o mosteiro foi o local escolhido para abrigar o projeto dos irmãos. O espaço é uma representação bastante característica da cozinha proposta por Romito, um dos mais criativos cozinheiros da Itália hoje: minimalista, elegante, mas sobretudo alicerçada no passado para propor algo genuinamente novo. A comida servida no Reale — e também no café da manhã que faz parte da experiência de quem se hospeda em um dos sete exclusivos quartos do Casadonna — é pura vanguarda, resultado de uma profunda pesquisa técnica: por trás de cada ingrediente, todas as nuances possíveis são dissecadas para encontrar o potencial ideal para sua combinação. Mas o aparente minimalismo estético proposto por Romito nos pratos — empratamentos monocromáticos, geralmente apenas um elemento ao centro — é só um disfarce para a complexidade dos sabores em jogo.
E jogo, aqui, não é força de expressão: o chef gosta mesmo de propor desafios a seus comensais a partir de contrastes o tempo todo. Onde se espera doçura, ele traz amargor; quando se espera sabor, ele surpreende com texturas. “Nem é algo proposital, eu acho. É assim que funciona a minha cabeça. Tenho uma inquietação de pensar como posso fazer diferente”, ele explica. O risoto feito com pimentão verde e maçã dourada da região de Abruzzo, por exemplo, não leva nenhum tipo de gordura (um creme perfeito criado com a maçã une tudo) e é servido à temperatura ambiente — ou seja, quase frio. Ou o gaspacho de tomates e morango, que une as duas frutas em uma entrada salgada. Ou ainda um naco gordo de berinjela com caramelo de pêssego: pela aparência e pela textura, o cliente pode jurar que está comendo algum tipo de carne, mas trata-se do mais corriqueiro vegetal.
“Penso cada vez mais na gastronomia como ramo de conhecimento holístico, em que cada um dos fatores — da técnica à mentira de pensar — são muito importantes na soma geral”,
diz, Romito.
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Até porque não há nenhum tipo de proteína animal no menu de Romito desde 2022, quando ele decidiu inovar — de novo — e oferecer apenas um menu degustação vegetariano no Reale. A notícia caiu como uma bomba na alta cozinha italiana: uns diziam que se tratava de puro marketing (já que outros restaurantes pelo mundo também anunciavam decisão semelhante); outros torceram o nariz para a proposta. “Eu sempre gostei de elevar o mais simples, o banal. Usar os vegetais era uma forma de me aproximar com uma cozinha que é muito cotidiana, muito própria em toda Itália. Mas para isso, precisava ser radical: se fizesse dois menus, por exemplo [incluindo carnes], a mensagem não seria tão forte”, ele explica.
É uma forma de resgatar uma relação afetiva e de respeito com a chamada Cucina Povera, uma vertente culinária nascida no pós-guerra que representava comida feita com recursos escassos por pessoas com escassos recursos. “Nossa cozinha se moldou na adaptação e no possível. A gastronomia italiana é essencialmente simples e regional, até mesmo — e cada vez mais — na alta cozinha”, defende. Romito vê uma mudança em curso no panorama gastronômico de seu país, onde há pouco tempo qualquer tentativa de modernização era vista com maus olhos, onde a ligação com o passado sempre desempenhou um papel primordial. Unindo o sentido de território e a busca pela evolução – em técnicas, ideias e sabores – chefs como Massimo Bottura, Franco Peppe, Massimiliano Alajmo e o próprio Romito permitem um novo olhar para a tradicional cucina italiana.
“A gastronomia na Itália está vivendo um momento de maturidade da sua força e de seu potencial, algo que tem nos permitido alcançar novos níveis”, ele afirma. “Graças sobretudo a cozinheiros com uma visão mais madura que veem o valor da diversidade da cozinha italiana na herança de uma cozinha regional, na diferença de produtos e de biodiversidade que cada região tem”. Para ele, se antes os cozinheiros do país buscavam uma codificação da alta gastronomia, hoje estão a perceber que ela se diferencia a partir dos produtos.
O próprio chef acredita que sua cozinha só é possível por essa diversidade. “Não preciso usar carne para mostrá-la no prato. Da endívia ao pimentão, de cogumelos a uma cenoura, eu tenho muito com que brincar”, explica. Foi a partir da raiz de textura lenhosa e sabor levemente doce que Romito criou o seu mais emblemático prato dessa recente fase de seu trabalho: em diferentes tipos de cocção (entre crua e um caramelo perfeito), ele apresenta a cenoura em diferentes vertentes e formas, para mostrar todo o potencial do que tem em mãos. “O meu trabalho é tentar alcançar a vanguarda pelo simples. Um esforço que exige força e coragem, no meu caso, de ver os vegetais como protagonistas”, afirma.
Isso não significa que ele abandonou de vez qualquer tipo de carne, nada disso. Em um império com duas dezenas de restaurantes em Milão e Roma aos hotéis da grife italiana Bulgari espalhados pelo mundo (de Dubai a Paris, com aberturas previstas de Miami a Maldivas) para os quais ele assina os menus, a criatividade de Romito vai além do reino vegetal. “Gosto de trabalhar em projetos e conceitos diferentes. Eles me desafiam como cozinheiro a sair do mesmo registro, a explorar de sanduíches a pratos refinados”, explica. A poucos quilômetros do Reale, aliás, ele também abriu o ALT Stazione del Gusto, uma casa de frango frito que tem todo jeito de restaurante de estrada, mas com a assinatura de um chef com a sua estatura (e que ganhou uma filial também em
Montesilvano). Além do frango e de bombas (sanduíches feito com um pão fofo tipo brioche), há hambúrgueres e focaccias, em um esforço de abraçar uma cozinha mais acessível e democrática, que atenda a todas as pessoas (especialmente aquelas que não podem pagar pelos 190 euros do seu menu degustação). O espaço, aliás, é uma homenagem ao pai, que era dono de uma confeitaria, posteriormente transformada em trattoria, e que criou receitas que tornaram muito famosas suas bombas.
Nesse tempo, o trabalho autodidata de Romito se provou cada vez mais criativo e obstinado: ele incluiu o pão, um dos alimentos mais importantes na tradição italiana, como um dos pratos servidos em seu menu, não apenas como entrada — o que também o fez criar um laboratório especializado em panificação. No ano passado, ele inaugurou a Accademia Niko Romito, um centro de formação para profissionais de cozinha nas instalações do Reale, com disciplinas mais livres, que tentam ensinar em um ano não apenas as tradições da cozinha italiana, mas sobretudo como buscar a criatividade e novos modos de trabalho. “Penso cada vez mais na gastronomia como ramo de conhecimento holístico, em que cada um dos fatores — da técnica à mentira de pensar — são muito importantes na soma geral”, diz.
Cristiana, que atua como diretora de sala, concorda: ela tem
trabalhado de mãos dadas com o irmão e os profissionais de serviço — como o sommelier Gianni Sinesi — para criar uma experiência realmente notável aos clientes que vão ao Reale.
O atendimento é impecável, elegante e fluido, sem as palestras intermináveis a cada prato que tomaram os restaurantes de alta cozinha. Formada em tradução e interpretação para alemão e francês, ela passou a estudar tudo, de hospitalidade a vinhos em cursos que foi fazendo para se aprimorar. Como o irmão, premiado com reconhecimentos importantes, como Chef Mentor pelo Michelin em 2021, e uma posição de cozinheiro pelo Fórum Econômico Mundial, Cristiana também colecionou louros nos últimos anos. Foi a Melhor Maître
pelo Guia Identità Golose e até Melhor Gerente de Sala pelas Les Grandes Tables Du Monde.
Sua hospitalidade é autêntica, mas incrivelmente precisa,
atenciosa e delicada. Do tempo cronometrado para o serviço de cada um dos pratos (“para nunca entediar o comensal”) até a criação de bebidas feitas na casa que possam oferecer um verdadeiro diálogo com os pratos que saem da cozinha, ela diz que o segredo é trabalhar todo dia para aperfeiçoar pouco a pouco tudo o que fazem ali. “Há discussões, claro, como acontece com quaisquer irmãos”, ri. “Mas acho que somos um pouco parecidos no nosso objetivo de fazer o melhor que pudermos e sermos muito exigentes com nós mesmos. Acho que é algo que está no sangue dos Romito”, conclui. E na identidade do império gastronômico que eles criaram também.
Romito nunca pensou em seguir o caminho da gastronomia. Pretendia encabeçar uma carreira em Economia, curso ao qual se dedicava na Universidade de Roma, até voltar à Abruzzo para ajudar as irmãs com o pai adoentado. Cristiana e Niko decidiram cuidar da trattoria da família e mantê-la funcionando até encontrarem um comprador. Mas com a morte do pai, decidiram tocar o negócio, ele na cozinha, sem qualquer experiência, ela no salão.