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Cooking

A nobre cozinha rebelde de Niko Romito

Em Castel di Sangro, o criativo chef italiano conjuga três estrelas Michelin com uma gastronomia ousada e minimalista, forma profissionais para o futuro e quer provar que, usando apenas vegetais, pode transformar a cozinha do seu país

  • Texto: Rafael Tonon
  • Fotografia: Helenio Barbetta e Andrea Straccini
12 de Setembro, 2024

Casadonna é um antigo mosteiro erguido no Vale do Sangro, no século XVI, na região italiana de Abruzzo. Construído inteiramente em betão bruto e pedra, com paredes brancas imaculadas, amplas janelas de vidro e portas de madeira talhada, é um edifício imponente, rodeado por vinhas, jardins e pomares nos arredores do Parco Nazionale d’Abruzzo, uma reserva biológica da região. Encerrado durante algum tempo, foi devolvido à vida após uma restauração ousada que manteve o seu caráter histórico, ao mesmo tempo que procurou uma transição para um estilo mais contemporâneo. Ganhou obras de arte, mobiliário de design e transformou-se na casa onde o chef italiano Niko Romito e a sua irmã, Cristiana Romito, recebem clientes vindos de toda a Itália e do mundo para visitar o Reale, o restaurante com três estrelas Michelin que gerem desde 2011 e que também funciona como alojamento.

Não é por acaso que o mosteiro foi o local escolhido para acolher o projeto dos irmãos. O espaço representa de forma clara a cozinha proposta por Romito, um dos mais criativos cozinheiros da atualidade em Itália: minimalista, elegante, mas, acima de tudo, enraizada no passado para propor algo genuinamente novo.

A comida servida no Reale — e também no pequeno-almoço, que faz parte da experiência de quem se hospeda num dos sete exclusivos quartos do Casadonna — é pura vanguarda, resultado de uma profunda pesquisa técnica. Por trás de cada ingrediente, todas as suas nuances são minuciosamente analisadas para encontrar o potencial ideal da sua combinação.

No entanto, o aparente minimalismo estético dos pratos de Romito — empratamentos monocromáticos, geralmente com apenas um elemento ao centro — é apenas um disfarce para a complexidade de sabores em jogo.

E “jogo”, aqui, não é força de expressão: o chef gosta realmente de desafiar os seus clientes através de contrastes inesperados. Onde se espera doçura, ele traz amargor; quando se espera sabor, surpreende com texturas.

“Nem é algo intencional, acho eu. É assim que a minha cabeça funciona. Tenho sempre a inquietação de pensar como posso fazer diferente”, explica.

O risoto de pimento verde e maçã dourada da região de Abruzzo, por exemplo, não leva qualquer tipo de gordura (um creme perfeito feito de maçã une todos os elementos) e é servido à temperatura ambiente — ou seja, quase frio. Ou o gaspacho de tomate e morango, que combina as duas frutas numa entrada salgada. Ou ainda um suculento pedaço de beringela com caramelo de pêssego: pela aparência e textura, o cliente pode jurar que está a comer algum tipo de carne, mas trata-se apenas de um simples vegetal.

“Penso cada vez mais na gastronomia como um ramo de conhecimento holístico, em que cada um dos fatores — da técnica à maneira de pensar — é fundamental para o resultado final”, diz Romito.

Até porque não há qualquer tipo de proteína animal no menu de Romito desde 2022, quando decidiu inovar — novamente — e oferecer apenas um menu de degustação vegetariano no Reale.

A notícia caiu como uma bomba na alta cozinha italiana: alguns diziam que se tratava de puro marketing (uma vez que outros restaurantes pelo mundo também anunciavam decisões semelhantes); outros torceram o nariz à proposta.

“Sempre gostei de elevar o que é mais simples, o banal. Usar os vegetais era uma forma de me aproximar de uma cozinha muito quotidiana, muito presente em toda a Itália. Mas, para isso, precisava de ser radical: se criasse dois menus, por exemplo [incluindo carne], a mensagem não seria tão forte”, explica.

É uma forma de recuperar uma relação afetiva e de respeito com a chamada Cucina Povera, uma vertente culinária que surgiu no pós-guerra e representava a cozinha feita com recursos escassos por pessoas com poucos meios.

“A nossa cozinha moldou-se na adaptação e no possível. A gastronomia italiana é, essencialmente, simples e regional, até mesmo — e cada vez mais — na alta cozinha”, defende.

Romito vê uma mudança em curso no panorama gastronómico do seu país, onde, até há pouco tempo, qualquer tentativa de modernização era vista com desconfiança e a ligação ao passado desempenhava sempre um papel primordial.

Unindo o sentido de território à busca pela evolução — em técnicas, ideias e sabores — chefs como Massimo Bottura, Franco Pepe, Massimiliano Alajmo e o próprio Romito abrem caminho para um novo olhar sobre a tradicional cucina italiana.

“A gastronomia em Itália está a viver um momento de maturidade da sua força e do seu potencial, algo que nos tem permitido alcançar novos patamares”, afirma. “Graças, sobretudo, a cozinheiros com uma visão mais madura, que reconhecem o valor da diversidade da cozinha italiana na herança da cozinha regional, na diferença de produtos e na biodiversidade que cada região possui.”

Para ele, se antes os cozinheiros do país procuravam uma codificação da alta gastronomia, hoje começam a perceber que ela se distingue precisamente através dos seus produtos.

O próprio chef acredita que a sua cozinha só é possível graças a essa diversidade. “Não preciso de usar carne para a representar num prato. Da endívia ao pimento, dos cogumelos a uma cenoura, tenho muito com que brincar”, explica.

Foi precisamente a partir desta raiz, de textura lenhosa e sabor ligeiramente adocicado, que Romito criou o seu prato mais emblemático desta nova fase do seu trabalho. Através de diferentes tipos de confeção — entre crua e um caramelo perfeito —, apresenta a cenoura em diversas vertentes e formas, explorando todo o potencial do ingrediente.

“O meu trabalho é tentar alcançar a vanguarda através do simples. Um esforço que exige força e coragem e, no meu caso, a ousadia de ver os vegetais como protagonistas”, afirma.

Isso não significa que ele tenha abandonado de vez qualquer tipo de carne, nada disso. Em um império com duas dezenas de restaurantes em Milão e Roma, até aos hotéis da grife italiana Bulgari espalhados pelo mundo (de Dubai a Paris, com aberturas previstas em Miami e nas Maldivas) para os quais assina os menus, a criatividade de Romito vai além do reino vegetal.

“Gosto de trabalhar em projetos e conceitos diferentes. Eles desafiam-me como cozinheiro a sair do mesmo registo, a explorar desde sanduíches até pratos refinados”, explica.

A poucos quilómetros do Reale, aliás, também abriu o ALT Stazione del Gusto, uma casa de frango frito que tem o aspeto de um restaurante de estrada, mas com a assinatura de um chef da sua estatura (e que ganhou uma filial também em Montesilvano). Além do frango e das bombas (sanduíches feitos com um pão fofo tipo brioche), há hambúrgueres e focaccias, num esforço para abraçar uma cozinha mais acessível e democrática, que atenda a todas as pessoas (especialmente aquelas que não podem pagar os 190 euros do seu menu de degustação). O espaço, aliás, é uma homenagem ao pai, que era dono de uma confeitaria, posteriormente transformada em trattoria, e que criou receitas que tornaram muito famosas as suas bombas.

Romito nunca pensou em seguir o caminho da gastronomia. Pretendia seguir uma carreira em Economia, curso ao qual se dedicava na Universidade de Roma, até voltar a Abruzzo para ajudar as irmãs com o pai adoentado. Cristiana e Niko decidiram cuidar da trattoria da família e mantê-la funcionando até encontrarem um comprador. Mas com a morte do pai, decidiram continuar com o negócio, ele na cozinha, sem qualquer experiência, ela no salão.

Em 2000, abriram o Reale com uma nova formatação e, em apenas sete anos, conquistaram a primeira estrela Michelin — a segunda veio dois anos depois. Em 2010, tiveram a oportunidade de ocupar o mosteiro da Casadonna e não pensaram duas vezes. Com o novo espaço, elevaram o nível de serviço e qualidade, criaram quartos para os visitantes e, em 2014, conquistaram a esperada terceira estrela — um dos 11 restaurantes em Itália com a cotação máxima no guia francês.

<p>Nesse tempo, o trabalho autodidata de Romito provou-se cada vez mais criativo e obstinado: ele incluiu o pão, um dos alimentos mais importantes na tradição italiana, como um dos pratos servidos no seu menu, não apenas como entrada — o que o levou também a criar um laboratório especializado em panificação.</p>
<p>No ano passado, inaugurou a Accademia Niko Romito, um centro de formação para profissionais de cozinha nas instalações do Reale, com disciplinas mais livres, que tentam ensinar, em um ano, não apenas as tradições da cozinha italiana, mas, sobretudo, como buscar a criatividade e novos modos de trabalho.</p>
<p>“Penso cada vez mais na gastronomia como um ramo de conhecimento holístico, em que cada um dos fatores — da técnica à arte de pensar — é muito importante na soma geral”, diz.</p>

Nesse tempo, o trabalho autodidata de Romito provou-se cada vez mais criativo e obstinado: ele incluiu o pão, um dos alimentos mais importantes na tradição italiana, como um dos pratos servidos no seu menu, não apenas como entrada — o que o levou também a criar um laboratório especializado em panificação.

No ano passado, inaugurou a Accademia Niko Romito, um centro de formação para profissionais de cozinha nas instalações do Reale, com disciplinas mais livres, que tentam ensinar, em um ano, não apenas as tradições da cozinha italiana, mas, sobretudo, como buscar a criatividade e novos modos de trabalho.

“Penso cada vez mais na gastronomia como um ramo de conhecimento holístico, em que cada um dos fatores — da técnica à arte de pensar — é muito importante na soma geral”, diz.

Cristiana, que atua como diretora de sala, concorda: ela tem trabalhado de mãos dadas com o irmão e os profissionais de serviço — como o sommelier Gianni Sinesi — para criar uma experiência realmente notável para os clientes que visitam o Reale.

O atendimento é impecável, elegante e fluido, sem as palestras intermináveis a cada prato que caracterizam muitos restaurantes de alta cozinha. Formada em tradução e interpretação para alemão e francês, ela passou a estudar tudo, desde hospitalidade até vinhos, através de cursos que fez para se aprimorar.

Tal como o irmão, premiado com reconhecimentos importantes, como Chef Mentor pelo Michelin em 2021, e uma posição de cozinheiro pelo Fórum Econômico Mundial, Cristiana também colecionou louros nos últimos anos. Foi eleita Melhor Maître pelo Guia Identità Golose e até Melhor Gerente de Sala pelas Les Grandes Tables Du Monde.

A sua hospitalidade é autêntica, mas incrivelmente precisa, atenciosa e delicada. Do tempo cronometrado para o serviço de cada um dos pratos (“para nunca entediar o comensal”) até a criação de bebidas feitas na casa que possam oferecer um verdadeiro diálogo com os pratos que saem da cozinha, ela diz que o segredo é trabalhar todos os dias para aperfeiçoar pouco a pouco tudo o que fazem ali.

“Há discussões, claro, como acontece com quaisquer irmãos”, ri. “Mas acho que somos um pouco parecidos no nosso objetivo de fazer o melhor que pudermos e sermos muito exigentes com nós mesmos. Acho que é algo que está no sangue dos Romito”, conclui. E na identidade do império gastronómico que eles criaram também.

Romito nunca pensou em seguir o caminho da gastronomia. Pretendia uma carreira em Economia, curso ao qual se dedicava na Universidade de Roma, até voltar à Abruzzo para ajudar as irmãs com o pai adoentado.

Cristiana e Niko decidiram cuidar da trattoria da família e mantê-la funcionando até encontrarem um comprador. Mas, com a morte do pai, decidiram tocar o negócio: ele na cozinha, sem qualquer experiência, ela no salão.